O tecnólogo e o prático

De repente ela parou de funcionar. Grande, bonita e na juventude até produzia gelo externamente na sua porta, agora não mais. Guerreira que era, há anos mantinha a temperatura adequada no seu interior conservando os alimentos por muito tempo. Agora, muda e apagada, não respondia a nenhum estímulo. Ao seu dono restava desocupá-la e providenciar alguém para identificar e corrigir o problema. Ligar para uma assistência técnica, autorizada pela marca, lhe pareceu a melhor solução. Dia e hora da visita foram agendados com um especialista para que diagnosticasse o problema e encontrasse uma solução.

O técnico chegou impecavelmente uniformizado, com crachá, roupas, sapatos, máscara, remetendo as características de um profissional da área da saúde. Depois de se apresentar colocou touca e protetor de sapatos para adentrar a residência. Encaminhado ao local da enferma, abriu seu laptop de última geração, afastou-a da parede, conectou-a ao mundo virtual e iniciou os procedimentos. O profissional, em silêncio, observava atentamente no seu lap  os sinais vitais da moribunda, acompanhando e avaliando os resultados de um quadro geral.

Após longos minutos dirigiu-se solene ao dono da casa: “Lamento informar, mas o quadro dela é péssimo. Infelizmente o problema é a placa mãe e sinto informar que ela já saiu de linha. Para o conserto é preciso substituir a placa, que é muito cara e realmente não compensa. Para o senhor ter uma referência, o custo de uma nova placa é a metade de uma geladeira nova. Além disso, como a placa saiu de linha irá demorar muito tempo conseguir uma outra no mercado.   Minha sugestão é substituir o refrigerador por um mais novo, o senhor ficará mais bem servido.” O dono tentou argumentar que ela parecia bem conservada, mas foi em vão. A placa mãe era um veredicto que determinava o viver ou morrer de um refrigerador. E em caso de morte o que fazer com o corpo? O especialista disse que não tinha resposta para isso e o aconselhou a doar para alguém. Olhou firme nos olhos do especialista, mas seus lábios hesitaram e acabaram impedindo que a sua voz dissesse o que ele realmente pensava da proposta. Doar sem que fosse possível a recuperação do objeto? Que empresa era essa que não se responsabilizava pela reciclagem?  O especialista recebeu pela visita, se despediu e partiu, com a certeza do dever cumprido.

O dono ficou observando sua cozinha aquele enorme corpo sem função, buscando se conformar e pensando em alternativas para descartá-lo e para adquirir uma nova geladeira com placa mãe atualizada.

Ao compartilhar o dilema com uma vizinha ela sugeriu que pedisse uma segunda opinião e sugeriu um profissional, que há muito tempo lhe prestava serviço e que sempre conseguia resolver os problemas. Cético, anotou o telefone e como não tinha nada a perder, resolveu contatá-lo para confirmar o diagnóstico.

No dia seguinte, lá estava ele. Era um senhor, aparentemente de idade avançada, com trajes precários, sapatos gastos pelo tempo e mãos calejadas. Arrastava, com dificuldade, uma velha bolsa desgastada, repleta de estranhas ferramentas de ferro ou aço, algumas pontiagudas outras arredondadas, sendo difícil identificar a utilidade de cada um. Diante da curiosidade do dono, informou que ele mesmo as construíra.

Afastou a falecida da parede e passou a observar cada pedacinho dela. Mexia aqui e acolá, ligava e desligava a tomada da parede, abria e fechava a porta, colocava o ouvido bem próximo de algumas partes usando as misteriosas ferramentas. De repente, ele falou alto: “Achei” Pediu ao dono para prestar atenção a um som que parecia inaudível, que para ele indicava uma coisa simples, um pequeno problema de vazamento. Era só fechar um orifício (que somente ele via) e repor o gás que havia escapado. Pediu um tempo para trazer outros equipamentos para o reparo, eles haviam ficado no carro. O dono, da janela, observou o automóvel que era tão velho como o homem e ficou imaginando como esta dupla ainda conseguia se deslocar. Com dificuldade, arrastou até a geladeira uma pesada traquitana. Depois de uma sequência de operações, disse que o serviço estava terminado. Ligou, então, a geladeira na tomada e como se fosse um milagre a geladeira começou a funcionar.  

O senhor, apresentou a conta pelo serviço e ofereceu garantia pelo serviço (na palavra), dizendo que se houvesse algum problema era só ligar para ele. O custo apresentado pelo serviço era menos da metade do que a autorizada cobrou pela visita do especialista. Por incrível que pareça, depois de meses a geladeira continua funcionando.

Impossível não pensar no contraste entre um profissional que usa a tecnologia e cumpre protocolos específicos, e o outro, com anos de prática, com ferramentas construídas a partir das necessidades do seu trabalho, apoiando-se nos sentidos para identificar problemas. Isso nos leva a uma reflexão:  a tecnologia é importante, mas não deve ser uma “caixa preta”. Se não houver um pensamento crítico, a compreensão de como funciona um determinado objeto e a ampliação de elementos para análise, corre-se o risco do humano se tornar robotizado, somente cumpridor de protocolos. É nas características humanas que encontramos a possibilidade de não nos submetermos a tecnologia, de não sermos escravos felizes dela, mas usá-la como uma ferramenta a mais. Não custa lembrar que para quem é martelo, tudo é prego ou que qualquer problema no mundo virtual é atribuído à “placa mãe”.   

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SÓ NO SAPATINHO

Ele era um quase octogenário e se recuperava de uma cirurgia no quadril.

Acostumado com a lida do dia a dia, teve que se conformar em diminuir as atividades profissionais. O celular tornou-se seu maior companheiro. Assistia a pequenos vídeos, acompanhava a vida de desconhecidos, lia notícias.

Inúmeros comerciais invadiam sua telinha. Costumava fechá-los sem se preocupar em ver o conteúdo. Mas, um deles insistiu tanto, tal qual um inseto voando em torno aguardando o momento da “picada”.  E não é que o acertou?  De repente, lá estava ele analisando a foto de um par de sapatos.

A foto trouxe a memória a sensação do sapato nos seus pés. Desde a cirurgia usava um par de chinelos e quase havia esquecido a sensação de ter os pés calçados por sapatos. A foto foi um bilhete para a viagem e identificação com um dos pares que ele possuía. Analisou detalhadamente a foto, identificou tipo de costura, de sola, do material que o compunha, e, de repente veio o desejo de comprar.

Ele não consumia produtos pela internet e um par de sapatos parecia algo arriscado, sentia a necessidade de ver, sentir e até ter a experiência de calçar o objeto. Por outro lado, o preço era também convidativo, correspondia a um terço do que pagara pelo último par de sapatos. Questionou a si mesmo se o tamanho seria adequado e encontrou, na propaganda, a medição dos pés associada aos números correspondentes. Finalmente, entre o desejo e o seu ceticismo, venceu a decisão pela compra. Talvez a compra, em um universo virtual, nada mais fosse que uma metáfora do seu desejo em calçar um par de sapatos e retornar à sua vida normal de atividades. Havia um tempo entre a compra e o recebimento do produto que não foi devidamente avaliado.

Um mês depois ele voltou a calçar sapatos, retomou as atividades e o par de sapatos que havia comprado ainda não chegara. Ele até tinha se esquecido da compra, quando recebeu um e-mail informando que o calçado adquirido se encontrava em outro estado, e, para recebê-lo, era necessário pagar uma pequena taxa. Achou que tinha caído em um golpe do mundo virtual, mas uma amiga o alertou que isso fazia parte do processo. Após alguma resistência, pagou a taxa e aguardou ceticamente a chegada do produto.

Depois de uma semana ele recebeu um pacote todo detonado e amassado. As condições do pacote já indicavam o estado do produto que ele embrulhava. O primeiro pensamento que lhe veio à mente foi que seria melhor não ter recebido a compra, pois a concretização dela era um atestado de que era um idiota.

A comparação da foto e a realidade era chocante. Ele se convenceu que os chineses eram realmente excelentes fotógrafos e transformavam a realidade em obra de arte. Dentro de cada sapato havia uma construção de isopor que grudou na palmilha cuja espessura podia ser comparada a uma folha de papel sulfite. O isopor introduzido no sapato para que ele não deformasse, não conseguiu o seu objetivo. A sola reta e flexível era de uma composição misteriosa. O tamanho era o mesmo que os chineses indicavam na sua régua, servia perfeitamente nos pés, os sapatos eram deformados, mas na numeração correta. Restou a ele os sentimentos do desejo e espera de uma cinderela pelos sapatinhos de cristal e a decepção do recebimento de uma cópia chinesa de plástico deformado. …Oh, Oh, foi um chinesinho que aprontou, só no sapatinho

Gratidão

Gratidão - Psicofix

Sem aviso prévio, a dinâmica da vida saudável é interrompida. O equilíbrio do organismo deixa de existir, instala-se o descontrole do corpo, e a única alternativa é buscar por ajuda. Em um pronto socorro foram realizados inúmeros exames e em pouco tempo os médicos decidiram a necessidade de internação em uma UTI. Tudo fica para trás, a presença solidária de pessoas queridas, roupas, documentos, objetos pessoais. A uma única concessão para a comunicação com o mundo é o celular.

A UTI é um mundo novo. O corpo é conectado a aparelhos com monitoração constante. A autonomia é substituída pelo controle de batimentos, pressão, temperatura, ingestão e eliminação de fluidos.

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Fim do amor

16 separações de casais que a gente achava que seriam eternos - Listas - BOL

O nascimento e a morte do amor são um mistério. Há inúmeras razões e circunstâncias, mas o desfecho é sempre misterioso.

A paixão aparece de repente, ataca corpo e alma, acelera o coração, faz as mãos suarem, fixa a imagem do objeto amado no pensamento e acentua o desejo de ouvir a voz, de sentir o toque. Amantes vivem constantes sensações de borboletas no estômago, de som de baladas de sinos, de voos com asas imaginárias.

É a paixão que abre espaço para que surja o amor que irá transformar, ondas de sentimentos arrebatadores em calmaria. O mar revolto aquieta-se com a convivência dos amantes, no quotidiano, no desenvolvimento de projetos de vida. O convívio do dia-a-dia permite viver diferenças de pontos de vista que podem solidificar ou destruir o relacionamento.

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As Leis da vida

O sonho do meu primeiro apartamento | Simplichique

Houve muita emoção quando ele, finalmente, recebeu a chave do apartamento, a primeira morada que iria chamar de sua. Depois de alugar diversas residências voltou a viver com os pais em casa confortável. Agora, era o momento de realizar o sonho acalentado há mais de uma década.

Do terreno ao prédio pronto foram meses de acompanhamento. Nas inúmeras caminhadas pela orla, próxima à construção, observava à distância as mudanças do esqueleto e sua transformação no corpo desejado. Houve atrasos e ele aceitou justificativas. Realizou as inspeções previstas para avaliação e melhoria da sua unidade no prédio, que como todas as outras, eram entregues sem acabamentos que ficavam sob a responsabilidade dos proprietários.  

Vendeu o que possuía (moto, bicicleta, etc.) e juntou a poupança para adquirir produtos e contratar serviços que possibilitassem personalizar criativamente seu pedaço de chão. Muitas pesquisas alimentaram seus sonhos para vestir e valorizar sua propriedade. Iluminação, pintura, piso, decoração invadiram e ocuparam todo o seu pensamento. Tirou férias do trabalho para planejar, desenvolver e acompanhar o processo de transformação do que ele passou a chamar carinhosamente de apê.

A primeira etapa foi a iluminação com sanca de gesso e luz indireta de LED para obter clima aconchegante à casa. Depois de discutir o projeto com o profissional contratado saiu para outras providências.

Foi surpreendido por um telefonema desesperado do gesseiro que o informou que a perfuração prevista no teto da sala fez surgir um gotejamento de água, impossível de estancar. Inicialmente incrédulo, em pouco tempo constatou a veracidade do relato. Havia uma goteira na sala.  De onde viria a água? Como poderia haver um cano no teto da sala?

O engenheiro responsável, chamado com urgência, embora descrente resolveu convocar, também, o mestre de obras. Ambos, munidos com as plantas do prédio, tentaram demonstrar e argumentar sobre a inexistência de cano no teto da sala. Indiferente às plantas hidráulicas e elétricas, e aos argumentos do engenheiro e seu mestre de obras, a água insistia em gotejar. Presenciou a conversa surreal dos profissionais envolvidos enquanto um balde aparava no meio da sala o líquido improvável.

O mestre de obras e o engenheiro decidiram, então, quebrar o teto e observar a origem da goteira. O teto da sala atacado por uma marreta, algumas pancadas depois revelou o mistério: havia um pedaço de mangueira repleto de água. Possivelmente a mangueira foi usada para molhar o cimento da laje e aquele pedaço foi inadequadamente cimentado. Houve um erro de operação na construção, mas ele não oferecia maior perigo. O engenheiro e mestre de obra identificaram que o problema indicava a necessidade de um cuidado maior no acompanhamento da construção. Se não houvesse o furo nunca ficariam sabendo que isso havia acontecido. Resolveram o problema e reconstruíram o teto.

O gesseiro ao perfurar o teto furou a borracha cheia de água o que provocou a goteira. Se ele tivesse realizado o furo um pouco mais para a direita ou para a esquerda ninguém ficaria sabendo que havia uma mangueira enterrada no teto.

Para ele a situação levou a reflexão. Pensou na famosa lei de Murphy: “Se alguma coisa pode dar errado, dará. E mais, dará errado da pior maneira, no pior momento causando o maior dano possível”. Ele repetiu esta lei na aquisição de muitos outros produtos e serviços para o apê.

Apesar dos transtornos o sonho não se transformou em pesadelo. Além do mais, durante a preparação do ninho ele se apaixonou e encontrou uma companheira para partilhar a construção. Assim, ele repete uma outra lei que ele mesmo criou: “Se alguma coisa pode dar certo, ela dará no momento certo e da melhor forma possível” .

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